Tenho escrito muitos artigos explicando a importância do contato com a criança ferida, da verdade de nossa história e sobre o rompimento do silêncio do sofrimento da infância, como Alice Miller sabiamente nos mostra em seus livros. Mas ainda assim, muitas pessoas não conseguem alcançar a profundidade desse trabalho.
Todos nós temos uma criança ferida, isso é fato. Raramente tivemos pais que tinham conhecimento das necessidades emocionais de uma criança, principalmente o período da gestação e os 2 primeiros anos, principais para nossa formação emocional.
Qualquer tipo de abuso deixa sequelas, por isso é importante relacionar essas sequelas como consequência do abuso sofrido e não como seu jeito de ser. O que faz toda diferença. Porque a partir do momento que identifico a origem de meu comportamento, eu consigo mudá-lo. Enquanto não temos consciência da dor original, quem estará no comando será o inconsciente, e agiremos no automático. E quantas pessoas não agem assim?
Para quem nunca fez um processo de autoconhecimento, vou descrever um caso que ilustra bem como nossas experiências iniciais determinam nossa vida. Vou chamá-la de Maria. As sequelas do abuso emocional vivido eram muito evidentes, visto ter tido um pai totalmente ausente, e uma mãe que a teve durante a adolescência. Naturalmente pela dificuldade que isso podia causar há mais de quatro décadas atrás, a rejeição deve ter começado desde o início da gravidez. E se manteve presente durante toda sua vida.
Suas principais queixas: necessidade exagerada de agradar, sua relação com o dinheiro um caos, e seus relacionamentos amorosos mostravam uma repetição de padrão recorrente, ora como o pai ausente, ora como a mãe autoritária e agressiva. Imaginem o tipo de relacionamento que seu inconsciente recriava, recheados de abusos, abandono e rejeição.
Durante o processo percebeu que sua necessidade de agradar tinha origem na sua própria mãe, sempre muito exigente, não poupando críticas em tudo que fazia, falava ou pensava. A necessidade de agradar começa quando não nos sentimos amados nem aceitos pelo que somos, e nosso inconsciente começa buscar de todas as maneiras mostrar nosso valor, para que em algum momento possamos receber o amor que tanto ansiamos de nossos pais. E quando não conseguimos, continuamos a fazer de tudo, inclusive adoecer, para conseguir tal façanha. No caso de Maria, ela agradava a todos, inclusive sua mãe, para que pudesse finalmente sentir que era digna de seu amor. Nem preciso falar que quanto mais ela fazia para agradar, mais era criticada e rejeitada.
Explorando sobre a rejeição e a possibilidade de ter começado desde sua vida uterina, Maria começou a pensar como deveria se sentir quando era amamentada por uma mãe que a rejeitou desde sua gestação. E ao pensar nisso, imediatamente lhe veio: “sentia o gosto da rejeição”.
Essa descoberta a fez entender a origem de sua dificuldade para se alimentar desde a infância. Seu inconsciente registrou alimentação como rejeição, fazendo a se sentir rejeitada toda vez que se alimentava, e para evitar a dor que isso causava, evitava comer. Isso era mais evidente quando ficava ao lado de sua mãe, mesmo na vida adulta, sempre comendo pouco quando estava ao seu lado.
Ah, e o dinheiro? Ela lembrou que durante sua vida sempre ouviu sua mãe falar que quem tem dinheiro “não presta”. Imagine uma pessoa que deseja o amor de sua mãe, ser reconhecida e aprovada… como poderia ter dinheiro? Simplesmente não podia!
Quando se identifica a dor original, ou seja, quando identificamos a primeira vez que tivemos aquela sensação, emoção ou sentimento, podemos ressignificá-la. Cada abordagem utiliza suas técnicas, no meu caso recorro a Imaginação Ativa, uma técnica de visualização criada por Jung, onde visualizamos cada cena e conversamos com a criança dizendo-lhe toda a verdade, que não tinha recursos para compreender na época.
Durante as sessões, Maria visualiza e explica para sua criança, que aquele alimento com gosto de rejeição não irá se repetir, que ela pode experimentar comer o que quiser, que é aceita e amada, que não precisa mais recriar padrões conhecidos porque já entendeu o que precisava aprender: que aquela mãe não cuidará mais dela, que ela é sim digna de amor, e que se seus pais não a amaram, o erro não é por ela ser quem é, mas de quem não conseguiu reconhecer sua luz, e que de agora em diante quem cuidará dela é a própria Maria adulta, que nesse momento se compromete com muito amor!
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