Entrevista sobre a importância da Criança Interior para o site Vya Estelar
Nesta entrevista ao site Vya Estelar, a psicóloga e analista junguiana Rosemeire Zago, desvenda o arquétipo (imagem do inconsciente) da criança interior, sua importância e como resgatá-la.
– O que é a criança interior?
Rosemeire: Para a realidade psicológica, a criança é um símbolo, um meio para expressar um fato psíquico. A criança interior representa a totalidade na nossa psique, a renovação psicológica, é nossa verdadeira essência. Nela estão presentes as lembranças ruins, os traumas, como também lembranças alegres, que posteriormente utilizamos como imagens âncoras.
– Qual é a importância em encontrar a criança interior?
Rosemeire: É a descoberta de nós mesmos. É importante entrar em contato com a criança interior para vivenciar o processo de individuação, ou seja, nosso crescimento. Isso se dá quando entramos em contato com nossos reais sentimentos, principalmente as dores que foram reprimidas por pura sobrevivência, identificando as necessidades emocionais não supridas, as máscaras que criamos para suportar as dores e a negação do “self”, o verdadeiro eu. É preciso amar primeiro nossa criança, para depois amarmos outras pessoas e recebermos amor, do contrário, sempre escolheremos, inconscientemente, relacionamentos doentes e destrutivos, recriando padrões da infância. Possuímos uma única arma contra dificuldades internas: a descoberta emocional da verdade sobre a história de nossa infância, que muitas vezes inclui abusos e muito sofrimento em silêncio. Hoje o resgate da criança interior é o elemento mais importante do trabalho terapêutico. Ouvir essa criança é essencial ao processo de tornar-se único. A necessidade de encontrar a criança interior faz parte da jornada de todo ser humano que se encaminha na direção do autoconhecimento e de sua totalidade. Ninguém teve uma infância perfeita. Todos nós carregamos questões inconscientes que não foram resolvidas. Sabemos que 80 a 95% das pessoas não receberam atenção adequada quando criança, assim o resgate da criança interior se torna a tarefa da maioria das pessoas. Afinal, o que há de mais rico e sagrado dentro de cada um de nós e que ninguém nunca poderá pegar, roubar ou levar, se não tiver o seu consentimento? Seus sentimentos. E só chegamos a ele através da criança interior.
– Onde vive a criança interior?
Rosemeire: Em geral, encontramos nossa criança escondida atrás da porta, embaixo da cama, ou dentro de um armário. Mas ela está em nossas fantasias, devaneios, sonhos, desejos, imaginações, intuições e principalmente, em nossas emoções. Quando você chora, quem está chorando é sua criança: abandonada, sozinha. Está presente também na parte de nossa psique que vivencia a angústia, a dor e o sofrimento; como também quando você brinca, tem prazer naquilo que faz. Quando você cria algo também é sua criança, ela é nossa maior fonte de criatividade.
– Todos nós temos essa criança?
Rosemeire: Sim. Todos nós tivemos uma infância, feliz ou não. A criança sobrevive dentro de nós e está aguardando o reconhecimento de sua presença. Ainda existe uma criança viva em cada um de nós que continua precisando de pai e mãe. E nós devemos nos tornar pai e mãe dessa criança, oferecendo a ela compreensão, amparo, atenção, carinho e amor, e principalmente validar de seus sentimentos reprimidos. A criança precisa urgente de quem suporte junto com ela seu sofrimento e angústia.
“Não são os traumas que sofremos na infância que nos tornam
emocionalmente doentes,
mas a incapacidade de expressá-los”
Alice Miller
– Como perdemos o contato com nossa criança e quando?
Rosemeire: Perdemos por diversos motivos. Acontece mais ou menos assim: quando a criança não se sente amada, importante, valorizada, nos seus primeiros anos de vida, aos poucos vai desenvolvendo muita necessidade de agradar para ser aceita e amada, com isso vai se afastando de quem é de verdade, de sua essência; e a consequência é: necessidades emocionais não satisfeitas, máscaras, angústia, crise e doença. Perde-se também o contato com a criança quando não sente permissão para expressar sentimentos de tristeza, raiva, perda, frustração, quando sente que seus sentimentos não importam, não se sente valorizada, amparada. Quando há abandono, críticas, cobranças, comparações, humilhações, tudo aquilo que a faz afastar-se de seus reais sentimentos e necessidades, ou seja, de quem realmente é,transformando-se naquilo que querem que seja. Não importa o que faça, nunca está certo. Nada do que diz, sente ou pensa está certo. É considerada louca, boba, burra, feia. E essa percepção de si mesma pode perdurar toda uma vida. O sentimento que ficará registrado é o da rejeição, do abandono. Perdemos o contato com nossa criança interior por volta dos 5, 7 anos.
– Uma dúvida muito comum é: os pais são os culpados por tudo isso?
Rosemeire: Sim. Como dizer que um pai não é culpado, quando abusa sexualmente da filha quando criança, a quem ela ama e confia, roubando toda sua infância e comprometendo toda sua vida? Apesar de sabermos que se os pais não proporcionaram algo, é porque eles também não receberam quando criança, que foram ou são, crianças feridas criando outra criança ferida, precisam aceitar que existe sequelas no que aprenderam ser “educação”. Quando falamos da maneira como os pais educam seus filhos, a intenção não é buscar culpados, mas sim a origem de muitos conflitos, para que haja uma compreensão e posterior elaboração. O que precisamos nos atentar é sobre o perigo da repetição de padrão. Todos tendemos a recriar quando adultos, o que vivenciamos nos primeiros anos de vida, principalmente com os filhos. Por exemplo, uma mãe que apanhou quando criança provavelmente irá bater em seus filhos, por mais que prometa não fazer igual. E isso precisa ser rompido! E só conseguimos romper padrões com a conscientização, que se obtém com o processo de autoconhecimento. Por isso a importância da psicoterapia/análise e consequente conscientização da verdade sobre a infância, rompendo assim o silêncio do sofrimento.
– Quem é o autor dessa teoria?
Rosemeire: Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço (1875-1961), que publicou o ensaio “A psicologia do Arquétipo da Criança” em 1940. Tudo começou com ele próprio resgatando lembranças da sua infância. Ele vivia sob o domínio de uma pressão interna que o fez revisar toda sua vida. Ocorreu-lhe então uma lembrança, carregada de afeto, em que estava com a idade de dez ou doze anos. Lembrou-se de que, quando menino, gostava de brinquedos de construção, fazendo casinhas e castelos, usando garrafas como suportes. Depois usava pedras naturais e terra. Essa lembrança emergiu acompanhada de muita emoção. Perguntou-se como chegar a esse garoto. Percebeu que havia esquecido esse jovenzinho, mas ficou evidente para ele, que aquela criança continuava viva e queria alguma coisa dele. Pensou que só lhe restava uma forma de voltar aquele garoto e passou a se entregar sempre que o tempo o permitia, ao brinquedo de construção. Denominou esta atividade de “brincar a sério”. Isso ocorreu quando estava desesperado com a perda de sua ligação com Freud e o rumo de sua vida profissional e pessoal. Por intermédio desse “brincar a sério”, entrou em contato com aquela sua criança esquecida e abandonada e a trouxe de volta para sua vida. Podemos dizer, que se tornou a mãe e pai perdidos de sua própria criança triste. Através desse contato com a criança interior, começou uma imensa onda de criatividade. Sempre que se sentia bloqueado ou precisava criar algo, se entregava ao brincar. Esse momento marcou um ponto crucial em seu destino. Na medida em que conseguia traduzir as imagens que se ocultavam nas emoções, sentia paz. E isso é bárbaro! Quem também estudou sobre a infância foi Ferenczi, que se aprofundou no conceito de trauma e a Alice Miller, que estudou as consequências dos abusos sofridos e o silêncio do sofrimento na infância. Teoria que muitos profissionais, lamentavelmente, ignoram.
– Qual o principal sintoma da desconexão interna com a criança?
Rosemeire: Os principais sintomas são: carência, vazio, medo da solidão, dependência financeira e/ou emocional, necessidade constante de aprovação, reconhecimento, atenção e amor. E aprende logo cedo a agradar a todos como forma de ser aceita, não importando o preço pago. Toda criança precisa de aprovação, quando não consegue obtê-la, não tem outra escolha senão encontrar amor e aprovação junto aos outros. Quando adultos, continuamos essa busca, é como se fosse a nossa própria criança buscando alguém que supra suas necessidades da infância. É um vazio nunca preenchido, uma carência eterna. Isso é carência afetiva: precisar que os outros preencham um vazio enorme. Na verdade, a pessoa se relaciona com outro buscando aquilo que ela não consegue dar a si própria, se relaciona com a parte que falta dela mesma. Essa carência é o reflexo de ausência dentro de si, que começa quando nos afastamos dos nossos reais sentimentos. Por isso as pessoas se sentem tão sozinhas, carentes, e assim, mantêm relacionamentos destrutivos, dependentes. A conexão externa com os outros, só poderá acontecer quando houver uma conexão interna consigo mesma. Neste momento os relacionamentos serão muito mais saudáveis, pois estarão baseados na troca, no crescimento mútuo e não nas carências. A falta de conexão com a criança interior emerge de forma mais intensa em momentos de perda, sofrimento, rejeição e abandono intenso. Mas, o pior abandono acontece quando abandonamos a nós mesmos. É quando a pessoa se sente perdida, abandonada, em desespero e com profunda angústia. A desconexão com a criança interior começa quando se afasta de seus sentimentos, de quem é de verdade, para ser aceita. Claro que todo esse processo acontece de modo inconsciente. Mesmo quando adulto, busca uma relação de dependência, desejando, ainda que inconscientemente, que o outro cuide dela, a alimente, a salve, buscando desesperadamente tudo aquilo que não recebeu do pai e/ou mãe. Em geral, irá se deparar com pessoas que a farão se sentir exatamente do mesmo jeito que seu pai e/ou mãe a faziam se sentir quando criança. Sentindo novamente a decepção, frustração, desespero, sente-se pior ainda, pois estará retraumatizando a criança interna.
“Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo, e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes.
Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa”
Jung
– Só perde a conexão com a criança interior em casos de abandono na infância?
Rosemeire: Absolutamente não. Mesmo quando a mãe e/ou o pai estiveram presentes, a criança pode registrar o sentimento de abandono, como em momentos que não foi ouvida, ou seus sentimentos não foram reconhecidos, validados e considerados. Também se perde a conexão com a criança em lares de brigas, agressões, em famílias disfuncionais, ou seja, emocionalmente doentes, pois para sobreviver a criança acaba também por adoecer emocionalmente, e muitas vezes, fisicamente, como forma de obter atenção. Na verdade, todos nós perdemos a conexão com nossa criança devido a educação que recebemos, que Alice Miller sabiamente chama de “deformação” e não educação. Somos abandonados em nossas necessidades emocionais, e quando adultos, continuamos a não suprir essas necessidades, pois em geral sequer a identificamos, e assim, também a abandonamos. Podendo resultar em 2 aspectos principais:
- profunda sensação de ausência pessoal de valor, achando-se sempre errada. Quantos adultos não se sentem assim? Desenvolvem assim uma enorme necessidade de agradar, dificuldade em dizer “não”, como que para provarem (a si mesmos) que têm valor, são importantes, e passam a vida em busca de reconhecimento de seu valor.
- sensação de culpa. Como registrou que não foi amada, ou não o suficiente, se culpa, acreditando ter feito algo muito ruim ou que ela mesma é muito má, para ter sido tratada da forma que foi. São aquelas pessoas que desenvolvem o papel de vítima, “tudo é culpa sua”. Assim, apegam-se facilmente a qualquer objeto, pessoa, que represente segurança (sexo, dinheiro, poder, comida, etc).
O vazio só é preenchido pelo amor-próprio. A ausência pessoal de valor (baixa autoestima) e sentimentos de culpa resulta geralmente no sentimento de inferioridade. Mas na verdade o que ocorre é que o adulto nega tudo isso, ou seja, nega seus sentimentos verdadeiros e carências, passando a valorizar mais as conquistas externas, sempre “imaginado” que algo ou alguém irá preencher seu vazio, pois no fundo se acha incapaz. Na verdade esse vazio só pode ser preenchido através do seu próprio amor.
– Há uma relação da educação da infância com a perda da criança?
Rosemeire: Totalmente, pois a maneira como fomos tratados, “educados”, nos faz perder o contato com nossa criança, ou seja, com nossos sentimentos mais sagrados, com a nossa essência e nos tornamos aquilo que nos fizeram acreditar que seria mais aceito e, portanto, mais amado. Por exemplo, a criança que se machuca e ouve como resposta que “não é nada”. O sentimento dela não foi considerado, não foi validado. Com isso, aprenderá desde cedo que o que sente não é importante. Como consequência irá crescer negando e/ou reprimindo seus sentimentos. Muito diferente de quando a criança ao cair recebe um beijo, o que na verdade valida o seu sentimento de dor e pode fazer toda diferença. Todo sentimento da criança deve ser sempre validado. Outro exemplo, famílias que não falam nada do que acontece para as crianças, alegando que não entenderiam, que se tornam os famosos ‘segredos de família”. Nada influencia mais as crianças do que fatos silenciosos, onde ninguém pode falar sobre eles. Podem levar uma pessoa à loucura, pois sentem tudo que está a sua volta, mas isso não é validado, fazendo com que duvide de seus próprios sentimentos e percepções. O que sua casa sussurrava quando criança?
- “Não há dinheiro suficiente”.
- “Você não é tão bonito, ou tão inteligente quanto seu irmão, prima”.
- As eternas comparações são um verdadeiro desastre na educação.
- Ou ainda: “Você não sabe fazer nada, não presta para nada”.
- Ou o menino que vê a mãe chorando e ao perguntar o que houve, tem como resposta: “nada”. Depois não saberá por que irá ignorar sua futura esposa quando ela chorar.
Como confiar? Quando as crianças não percebem coerência entre o que sentem e o que ouvem, recorrem ao que chamamos de “pensamento mágico”, ou seja, idealizam que tudo é ótimo, feliz. Quando adultos passam a ter muita dificuldade em entender o que houve. Mesmo que as palavras não sejam ditas claramente, as mensagens são ouvidas pela criança com a clareza como se cada palavra houvesse sido pronunciada. Ela sente o que os pais sentem, e não o que eles dizem, e por isso percebem muito bem as incoerências. Outro exemplo, se o pai espanca regularmente a mãe, como a criança pode aceitar apanhar de sua mãe por que ele bateu na irmã? Faz sentido dizerem que ele não pode fazer isso? Como uma menina que foi abusada sexualmente pelo pai, aquele a quem deveria amar e proteger, poderá confiar em um homem quando adulta? Quando somos pequenos, quase sempre, os pais são nossos heróis, e conforme sentimos que não o são, o sentimento de frustração é muito profundo. Pais inseguros, sem estrutura emocional, fazendo com que a criança logo cedo perceba que nunca suportarão o que ela sente, ou quando a criança é muito criticada, cobrada, controlada ou ainda, se sente rejeitada, deixada de lado, ela desiste de ser ela mesma e desenvolve o que chamamos de um “falso eu”, ou seja, começa a ignorar seus sentimentos e ser da forma que acredita que será aceita, com isso se afasta de quem é realmente, originando o vazio, a busca pelo externo, a carência, a necessidade de aprovação, reconhecimento, agradar, ser aceita, enfim, surge a necessidade visceral de reconhecimento e amor. Esse processo geralmente só é rompido e percebido através da psicoterapia/análise, ou seja, do autoconhecimento.
– Como evitar que isso ocorra, que orientações é possível dar aos pais?
Rosemeire: Antes de tudo, os pais devem se lembrar da própria infância. Como eles foram tratados? Quais as sequelas que tiveram? É importante também lembrar que o tempo e a qualidade que os pais dedicam às crianças indica para elas o grau que eles as valorizam. A questão não é tanto o que os pais não lhes dão, mas o que não lhes tiram, como sua capacidade de ser ela mesma, expressar seus sentimentos. A melhor forma de uma pessoa se perder dela mesma, é ser ignorada em seus sentimentos. Quando somos pequenos, não temos o benefício da comparação, do discernimento, os pais são figuras divinas aos olhos infantis. Quando eles fazem as coisas de determinada maneira, para a criança essa é a maneira como as coisas devem ser feitas. Se ela apanha, ela terá essa referência de educação e amor.
Os pais devem demonstrar amor através do respeito, da amizade, compreensão, do diálogo. As crianças amadas sabem que são valorizadas, e essa sensação de valor é essencial à saúde mental. E quando uma pessoa se sente valiosa, ela aprenderá que será capaz de cuidar de si mesma, suprindo todas suas necessidades, como alguém cuida de algo de valor. Ela não dependerá que outros a façam se sentir importante, pois ela saberá disso. Não permitirá que a maltratem, não aceitará migalhas para ter um pouco de atenção e amor.
– A depressão tem algo a ver com a perda da criança?
Rosemeire: Acredito que sim. A depressão é causada pelo fato da criança ter que se adaptar a um “falso eu”, abandonando seu eu verdadeiro, o que cria um sentimento de vazio. Jung diz que a depressão é antes de tudo um convite à introspecção, olhar para dentro de si. Dizia que a depressão pode ser concebida como um mergulho no inconsciente, com o propósito de dar início a uma viagem pelo seu próprio interior, ou seja, uma oportunidade para crescer, proporcionando e aumentando seu autoconhecimento. E entrar em contato com sua criança interior pode proporcionar esse encontro. Não só a depressão, mas qualquer outro sintoma, ou fracasso, momentos de dor, solidão, devem ser considerados um convite para as pessoas refletirem e renascerem para uma vida diferente, pois neste momento podem perceber os recursos interiores e que são capazes. É o momento que poderá proporcionar crescimento, o encontro com seu verdadeiro eu.
– E pessoas agressivas?
Rosemeire: Em geral, o comportamento agressivo é o resultado da violência na infância, da mágoa e da dor não resolvidas. Os agressivos não assumem a responsabilidade por seu comportamento, porque geralmente agem assim de forma inconsciente, ou seja, não percebem muito bem o que fazem, apenas repetem um padrão conhecido. A energia emocional do passado, não resolvida, ou seja, não tendo com quem expressar e suportar suas dores na infância, acaba sendo expressa da única forma conhecida, com agressividade. Um adulto agressivo demonstra que mesmo não sendo mais agredido, ele próprio o faz, agredindo a si mesmo ou aos outros, contra pessoas que não têm nenhuma relação com a origem. Essa agressão aos outros é mais uma maneira de tentar se defender para não ser mais agredido do que já foi em seu passado. Ou seja, as crianças precisam da segurança do exemplo de emoções saudáveis. Quando o ambiente familiar é de violência, quando adultos, tendem a repetir o que experimentaram na infância. Inconscientemente, tendemos a repetir alguns padrões negativos, até que, através do sofrimento intenso, consigamos perceber as mensagens e modificar nossa realidade. A violência não é apenas as agressões físicas, mas principalmente as palavras que ferem, ou ainda, a agressão silenciosa, como a indiferença, o silêncio, a ausência de atenção, afeto, carinho, amor.
– Como ajudar alguém a encontrar sua criança interior?
Rosemeire: Apoiando e permitindo que expresse seus reais sentimentos, dando muito colo e validando seus sentimentos. E também participando do meu workshop.
– Há relação entre criança interior e emoção?
Rosemeire: Tudo. A criança é pura emoção. Quem não consegue ter controle das suas emoções, é porque não reconhece as necessidades da criança e nem sabe que seus descontroles são reações dela. Quando você está triste, chorando, na verdade é sua criança que faz você sentir tudo isso, pois é o que ela está sentindo desde sua infância. Se ela não for tratada com o amor que esperava, vai ficar esperando e muitas vezes buscando nas outras pessoas este amor, mas só uma pessoa pode dar isso a ela: você! Quando há dificuldade em identificar e vivenciar as próprias emoções, fica mais difícil o processo de encontro consigo mesmo, sua essência.
– Uma pessoa fria e amargurada pode encontrar sua criança?
Rosemeire: Pode e deve. A pessoa que é mais fria tende a ser alguém mais racional, que reprimiu seus sentimentos por todos os motivos já ditos acima, e pode tornar-se consciente do que aconteceu ao entrar em contato com a criança interior. Deve ter desenvolvido quando criança a arte de não sentir seus sentimentos, pois uma criança só pode assumir e sentir seus sentimentos quando existe ali alguém que os possa aceitar completamente, entendendo e dando apoio. A quem Alice Miller chama de “testemunha auxiliadora”, e raramente tivemos essa testemunha na infância. É preciso acolher essa criança e entrar em contato com suas emoções e sentimentos reprimidos, oferecendo tudo aquilo que não teve quando criança. Com certeza fará uma diferença significativa em sua vida.
– E o que você diria dos workaholics?
Rosemeire: Os fanáticos pelo trabalho ou que não conseguem parar de trabalhar, nem desfrutar dos benefícios de seus esforços, podem obter com o trabalho uma satisfação suficiente da imagem de si mesmos, que dissimula seu vazio interior. Pode ser uma fuga, inconsciente, de algo que não vai bem nas outras áreas de sua vida, ou ainda, a busca incansável pelo reconhecimento. Há ainda aqueles que trabalham em excesso por terem aprendido que não é certo ter momentos de lazer.
– Os adultos que vivem brincando, contando piadas, que agem como criança, estão sempre em contato com sua criança interior?
Rosemeire: Não! É muito diferente o adulto infantil e a criança interior. Muitas vezes, os adultos que estão sempre brincando, demonstram muita dificuldade para entrar em contato com seus reais sentimentos por algum motivo. Seria muito mais uma fuga ou dissimulação do que sentem, do que alegria genuína, pois ninguém tem motivos para brincar 24hs. Quando me refiro a reencontrar a criança interior, não é para resgatar a sombra infantil, que nos leva de volta para a dependência, preguiça, fuga dos problemas e responsabilidades da vida. Mas sim da criança que representa a renovação, a espontaneidade e criatividade. Estar em contato com a criança interior é muito diferente de estar sempre brincando. É ser uma pessoa equilibrada, porque aprendeu a lidar com suas emoções.
– Adultos que maltratam ou têm dificuldade em lidar com crianças demonstram algo?
Rosemeire: Com certeza. O modo como o adulto trata uma criança pode estar relacionado com suas próprias experiências quando criança. A forma como tratamos as crianças, sejam filhos, alunos, ou ainda, como nos tratamos quando adultos, reflete a forma como fomos tratados. Muitas pessoas que se dizem “profissionais”: médicos e, lamentavelmente, a maioria dos psicólogos, ignoram as dores e o sofrimento reprimido da infância de quem os procura, porque na verdade não conseguiram ainda enfrentar suas próprias dores. E Alice Miller descreve muito bem isso em seu livro: Não Perceberás. É muito importante que pais, ou quem pretende ter filhos, tenha consciência da tendência em recriar padrões conhecidos de comportamento e aprendam a cuidar e reconhecer sua própria criança para que possam diminuir as chances de repetirem os padrões da infância nos próprios filhos. Estou elaborando a Escola de Filhos, onde a proposta é proporcionar os pais e/ou futuros pais, uma reflexão sobre a própria infância para que possam educar de forma saudável e com menos sequelas aqueles que tanto dependem dos pais e/ou cuidadores.
– É importante o adulto brincar?
Rosemeire: Sim, pois ao brincar o adulto estará em contato com sua própria criança. Para os adultos, brincar é ir a restaurantes, cinema, beber, comprar um carro novo. Brincar é muito diferente, é o que acontece espontâneo, não planejado, como quando você rola no chão, quando se entrega ao que está fazendo. Você já observou uma criança brincando? Ela fica no momento presente, totalmente focada naquilo que faz e lhe dá prazer. Por exemplo, muitos pais acabam brincando quando compram um carrinho de controle remoto para o filho, como única forma de se permitir brincar. Por que não permitir-se comprar um brinquedo para si?
– Quais as conseqüências de não reencontrar a criança interior?
Rosemeire: Todos nós temos dois aspectos em nossa personalidade: o Adulto e a Criança. Quando não estão conectadas por terem sido feridas, a sensação interior é de conflito, vazio, solidão, dependência. Sentimo-nos sós quando perdemos a conexão com nós mesmos, quando aprendemos a nos abandonar desde muito cedo. A perda da criança interior é uma das maiores tragédias do processo de crescimento. Perdemos grande parte da magia e do mistério de viver, da parte mais rica que temos, podendo comprometer nossas mais sagradas aspirações e sonhos. A maior parte das crianças não foram amadas pelo que eram, mas sim pelo seu desempenho, em serem obedientes ou pelo que representavam. Em algum momento, sentirão a necessidade de viver de acordo com seu verdadeiro eu.
“Volta ao começo;
Torna-te outra vez criança”
Tao Te Ching
– O que melhora ao entrar em contato com a criança interior?
Rosemeire: Tudo, pois ao identificar as dores e o sofrimento da infância, aprenderá a validar todos os seus sentimentos e que a criança não é culpada do que lhe fizeram e assim, se libertar das amarras do passado. A criança é nossa maior fonte de criação e amor. Há uma transformação, uma mudança de perceber a vida. Transformamos nossa consciência, crescemos, transcendemos, vivenciamos mais poder pessoal e de escolhas. Não permitimos mais relacionamentos doentes e destrutivos e começamos a assumir mais a responsabilidade pela nossa felicidade, a ter respeito pelos nossos sentimentos e o principal: conquistamos nossa independência emocional.
– Existe preconceitos com toda essa teoria (criança interior)?
Rosemeire: O preconceito ainda existe, mas acredito que seja fruto da falta de informação. Nos Estados Unidos há muitos cursos baseados nessa teoria, mas no Brasil ainda é pouco divulgado e quando acontece, muitas vezes não é realizado com a seriedade que o assunto requer, sendo na maioria das vezes citado em livros de autoajuda e de forma superficial.
– Como é o workshop para resgatar a criança interior que você realiza?
Rosemeire: São dois dias de mergulho na infância, com músicas, filmes, brincadeiras, reencontro com a criança interior através da meditação, amigo secreto de brinquedos, e muita teoria para entender como ocorre esse processo. As pessoas resgatam muitas lembranças, identificam sentimentos, apesar de que ninguém irá contar seus problemas, pois não há vínculo para isso. Cada um faz sua própria análise e quem faz psicoterapia/análise, pode levar o material para conversar com o profissional.
É um resgate da magia de viver, identificação e libertação das dores reprimidas, acolhimento da criança ferida, e um verdadeiro encontro consigo mesmo. É mágico!!
Minha primeira entrevista do workshop: “Reencontre sua Criança Interior” (nome da época) foi publicada no jornal Primeira Hora em 28.06.97: