Você já foi cobrado para perdoar quem lhe fez sofrer? Ou é você mesmo que se cobra? Não estou dizendo de uma simples briga de namorados, briga entre irmãos, ou qualquer outro conflito que possa acontecer, que também pode trazer dor e sofrimento; me refiro a dores geradas por abusos físicos, emocionais e sexuais de quando ainda éramos crianças.
Muitas crianças sofrem abusos, e enquanto sentem suas dores, todo o seu ser quer gritar a sua raiva, expressar sua revolta e pedir ajuda, mas não consegue. Tenta apagar, apagar completamente de sua memória tudo o que foi infligido, a banir de sua consciência a sua revolta, raiva, medo, sofrendo o intolerável, mas também não consegue. Crianças abusadas sofrem em silêncio porque quase sempre são ameaçadas, e no silêncio de suas dores reprimidas, sem terem com quem contar e receber apoio, também sentem culpa por tudo que lhes acontece. Algumas crianças se fecham em verdadeiros casulos, outras se tornam rebeldes, e outras adoecem, não porque assim o querem, mas com a intenção de serem ouvidas em seu jeito particular de se expressarem. Os anos passam e essas dores vão sendo reprimidas, pois a criança não tem nenhum tipo de estrutura para se defender. E nem encontram que as defenda, lamentavelmente.
Quando todas as tentativas de encontrar quem possa entender as expressões de suas dores, não tiveram sucesso, tenta ser ouvido pela linguagem dos sintomas, doenças, dores sem causa. Alguns esquecem, mas quando adultos podem ter suas lembranças trazidas por sonhos ou sintomas, fazendo com que aquelas cenas de horror se tornem novamente presentes. Agora adulta, começa a suspeitar que a causa de seu sofrimento de toda sua vida pode estar relacionada a sua infância.
Entre os sobreviventes de tal tortura, encontramos dentro de cada adulto uma criança que continua a viver na escuridão do medo, repressão, ameaça. Sentem-se ainda, enganadas em seu amor e confiança, violadas em sua dor, humilhadas, pois foram maltratadas por aqueles a quem espera-se receber amor. Difícil suportar tudo sozinha, mas em quem confiar?
Quando conseguem ter coragem para contar os abusos sofridos para aqueles que deveriam ter lhes defendido (mãe, tios, primos) quando crianças, são cobrados que devem perdoar, e que continuem a convivência. Sim, é muito comum mães pedirem isso!!! Ouço constantemente relatos de pessoas que foram abusadas sexualmente quando crianças, a maioria pelo próprio pai, que devem “perdoar”. Em geral essa cobrança é feita pela própria mãe, que quase sempre tem muitos motivos para tal pedido: manter a “família unida”, medo de ficar sozinha, dependência financeira e/ou emocional, enfim, sempre existe algum interesse próprio para que sua filha perdoe o que o marido fez, em prol da “ilusória família”. Ilusória, por que, como uma mãe pode acreditar que é possível continuar existindo uma família, como se nada tivesse acontecido, depois de saber que sua filha foi cruelmente abusada? Como pode ser possível continuar a conviver com o abusador como se nada tivesse acontecido? Perdoar??!!! Parece absurdo para quem não vive essa realidade, mas é mais comum do que podemos imaginar.
Conscientes ou não dos abusos sofridos, as sequelas se fazem presentes, lamentavelmente, ou sabiamente, por que é isso que muitas vezes faz com que, já adulta, procure ajuda de um psicólogo para acompanhar os passos desta dolorosa exploração. Quando supreendentemente, no ambiente psicoterapêutico, ouvem sobre a necessidade do perdão como condição para a cura. É comum esses sobreviventes, ouvirem: “você não pode ser curado até que tenha perdoado seus pais por tudo que te fizeram. Embora seu pai era alcoólatra, abusou de você, bateu, xingou, humilhou, abusou sexualmente, ou te fez roubar, causando sofrimento além do que você podia suportar – ainda assim você deve perdoá-lo, caso contrário você não será capaz de se curar”. Ou ainda: “se você não perdoar sua mãe, ou pai, você nunca vai perdoar a si mesmo, nem se curar”. Como assim? Em vez de ajudar o paciente a se livrar dos sentimentos de culpa que já carrega – que deve ser o papel da psicoterapia ou análise – um requisito adicional lhe é imposto, reforçando seu sentimento de culpa, que já é imenso.
Sim, muitos programas, e até “profissionais”, dizem que você tem que submeter-se ao “perdão”, supostamente necessário para a cura. Não acredite nisso! Atolados no sistema educacional, em vez de ajudar o paciente a se livrar das consequências do trauma, eles oferecem-lhe a moralidade tradicional. Quando um “profissional” diz que a cura emocional se alcança com o perdão, na verdade está retraumatizando aquele que o procurou, com mais culpa, além do que já carrega por tudo que passou e teve que reprimir por anos, pois dificilmente quem sofreu algum tipo de abuso consegue perdoar, e não conseguindo, sentirá mais culpa ainda, como se fosse incapaz de tal ato.
Qualquer tipo de abuso, seja físico, emocional ou sexual, deixa marcas, dores, e muitas sequelas. E qual direito alguém tem para pedir que a vítima perdoe quem a abusou e, inclusive continue a conviver com o abusador? Quando são os pais ou familiares que pedem – ou impõem – o perdão, posso até entender, porque é assim que aprendemos, são crenças difíceis de serem atualizadas, mas é inadmissível quando isso vem de profissionais da saúde mental que agem como se fossem verdadeiros sacerdotes, sendo que estamos longe desse papel.
O perdão pode sim ser exercido por qualquer pessoa, como uma escolha de acordo com sua prática religiosa, e cabe a cada um avaliar de acordo com suas crenças, que não cabe no ambiente psicoterapêutico, a não ser que seja trazido pela própria pessoa, e nunca sugerido pelo profissional.
O perdão não elimina o ódio e a raiva natural de quem foi abusado e sofre por muitos anos calado em sua dor. Todas as engrenagens da máquina do perdão, podem funcionar quase que perfeitamente – mas à custa da verdade. É um modo sutil de dizer: “não leve isso adiante, continue a reprimir o que você levou anos para conseguir expressar”, como se as próprias sequelas de qualquer abuso não insistissem em se fazer presente, muitas vezes, mesmo depois de muitos anos do abuso sofrido.
Pedir que se perdoe quem lhe causou – e ainda causa – tanto sofrimento, quando exigido por familiares ou “profissionais”, como único caminho da cura, é o mesmo que pedir para que continue a negar a verdade, vindo na direção oposta do que tanto lutamos para que cada sobrevivente consiga: ter suas dores validadas, e isso só se consegue com a verdade, pois sabemos que é só através da verdade que realmente começamos o processo de cura.
Há muitas outras situações em que o perdão é colocado como único caminho para a cura. Mas será mesmo? É possível pedir para alguém perdoar o pai, tio ou quem seja, que lhe abusou sexualmente durante toda sua infância? E agora adulta não consegue ter nenhum relacionamento amoroso por causa disso? É possível pedir que se perdoe uma mãe que durante anos rejeitou sua filha, a humilhou, bateu, gritou, ofendeu, comprometendo assim toda sua vida? Há muitos outros casos, infelizmente, mas só quem passou por abusos em seus primeiros anos, sabe a dor que sentiram e as sequelas que carregam. Não seria muito mais honesto, deixarmos que cada adulto que sobreviveu a tantos abusos quando criança, seja livre para viver longe desses algozes, sem ser cobrado que os perdoem, como se o perdão fosse seu único caminho para a cura?
Alice Miller, lutadora incansável da importância de rompermos com o silêncio do sofrimento na infância, escreveu:
“… Apenas com a descoberta de sua própria verdade, no processo de terapia, passo a passo, sem uma falsa moral, pode parar essa ideologia desastrosa. Pois é somente com a sua própria verdade que homens e mulheres que sobreviveram ao abuso estarão livres de consequências. O esforço exigido pelo perdão está longe de sua verdade. Uma terapia eficaz deve trazer o paciente para acessar os seus sentimentos, porque só esse acesso lhe permitirá encontrar o seu caminho e ser autenticamente coerente com ele mesmo. Aplicações moralizantes só podem bloquear o acesso”.
E para completar ela ainda diz:
“As religiões podem exercer um enorme poder sobre nossas mentes e empurrar-nos em muitas maneiras de enganar a nós mesmos. Mas eles não têm a menor influência sobre nosso corpo, que conhece as nossas verdadeiras emoções, e insiste em que nós o respeitemos”.