No consultório recebo muitas pessoas com as mais diversas queixas, e com seus respectivos sintomas físicos e/ou emocionais. Isso me levou a estudar cada vez mais as possíveis origens dessas queixas, e ao explorar a infância e adolescência, principalmente os primeiros anos de vida, encontramos muitas situações de abuso: físico, emocional e/ou sexual.
Quem sofreu abuso na infância carrega traumas psíquicos, que na vida adulta podem acarretar em consequências impactantes. Inúmeros estudos demonstram que o estresse prolongado na infância tem consequências ao longo da vida para a saúde, e pode perturbar o desenvolvimento inicial do cérebro e funcionamento dos sistemas nervoso e imunológico.
Infelizmente, o que mais tenho percebido é que muitas pessoas não se beneficiam do resultado do processo de autoconhecimento por não conseguirem identificar o que passaram na infância como abuso. E assim, não relacionam suas dificuldades atuais com os primeiros anos.
Acredito que a reflexão sobre os efeitos prejudiciais e de longo prazo que os abusos sofridos nos infligem é um dos melhores caminhos para a conscientização e posterior interesse em um processo de autoconhecimento. Quando identificamos, exploramos, validamos, e assim, elaboramos aquilo que nos aconteceu, acolhendo a criança que fomos, os sintomas físicos e/ou emocionais, deixam de existir. Como isso acontece? Nosso corpo nos transmite mensagens do inconsciente, assim como nossos sonhos. Como toda dor e trauma ficam reprimidos em nosso inconsciente, ao tornar conscientes nossas lembranças, teremos muito mais condições de lidarmos com o que reconhecemos.
Por exemplo, uma criança que sofreu um abuso sexual nunca conta para alguém devido ao sentimento de culpa, medo ou vergonha, mantendo esse segredo por muitos anos. Esse abuso, tanto quanto o fato de ser mantido em segredo, trará consequências durante toda sua vida, se não for trabalhado, ressignificado e seus sentimentos validados. Muitas pessoas acreditam que o abuso acontece quando é sexual, mas o abuso emocional e/ou físico é muito comum e nem sempre é considerado como abuso, e que também deixa traumas.
Temos 2 situações comuns:
– Pessoas que não lembram do que aconteceu dos primeiros anos de vida.
Parece que não, mas isso é muito comum. Algumas pessoas lembram apenas do que lhes aconteceu a partir dos 10, 12 anos ou mais. Isso pode acontecer por diversos motivos, mas pode estar relacionado com uma história de vida de abusos, e pela dificuldade em lidar com suas dores, permanecem reprimidas em seu inconsciente. Não lembrar não quer dizer que não sofreu algum tipo de abuso, apenas não lembra. Nesse caso, o profissional, caso ela faça uma análise, irá considerar como indício, seus sintomas físicos e sonhos, que como expliquei no início, transmitem mensagens do inconsciente, e portanto, são considerados como um importante diferencial durante o processo. Outras técnicas que podem ser utilizadas para o acesso aos conteúdos e lembranças inconscientes são: hipnose e imaginação ativa.
Por exemplo, uma mulher relata na sessão de análise que não consegue se aproximar fisicamente de algum homem, transforma sua imagem corporal de modo a não ser desejada, usa roupas largas, toma muitos banhos por dia (nojo do próprio corpo), sofre com alguns sintomas físicos, vomita regularmente, é hipervigilante, não confia nas pessoas. Todos esses sintomas podem ter origem na possibilidade de ter sido vítima de abuso sexual, que poderão ser confirmados durante o processo e pela remissão dos sintomas.
– Pessoas que lembram do que aconteceu nos primeiros anos de vida.
Aqui se inclui pessoas que têm autoconhecimento, fizeram ou fazem psicoterapia/análise, e por isso possuem ferramentas para lidarem com seus conflitos e história de vida, diminuindo muito mais a possibilidade de repetirem padrões aprendidos na infância, ou criarem doenças físicas e/ou emocionais.
Pessoas que nunca passaram por nenhum processo de autoconhecimento, dificilmente relacionam suas dificuldades ou doenças na vida adulta com o que sofreram na infância, por total falta de conhecimento.
Há também aqueles que se lembram de sua infância, sofreram abusos, e ainda assim, negam seus traumas e não consideram suas dificuldades na vida adulta como consequências dos abusos sofridos na infância. Alguns podem sofrer de alexitimia (dificuldade em identificar e suas próprias emoções) ou como mecanismo de defesa. O pior disso, é que aquilo que não reconheço, tendo a repetir. Você sabia que a criança até os três anos e um pouco além, aprende por repetição mais do que qualquer outro modo? Da concepção até os três primeiros anos, aprendemos os valores que teremos para o resto da vida.
É muito comum ouvirmos: “meu pai me batia muito, mas era porque eu merecia”, ou ainda: “agradeço as surras que levei, não me traumatizaram”. Pessoas que pensam assim estão muito equivocadas, pois todo abuso acarreta em trauma e suas consequências, e isso não tem nada haver com querer ou não, são processos automáticos. A criança, em geral, sente que é culpada de tudo que acontece ao seu redor, só conhece o que vivencia e, muitas vezes, essas justificativas são resultados de uma rígida educação em que a regra era a obediência.
Quando a criança sofre algum abuso é importante que receba apoio e permissão para falar abertamente sobre sua dor, e que suas emoções sejam validadas sem críticas, como isso raramente ocorre, infelizmente, os efeitos do trauma psíquico persistem além da infância.
O adulto que nega a realidade da sua infância está negando a si mesmo sua verdade, esquecendo que só a verdade poderá libertá-lo de dores que podem estar reprimidas no inconsciente, e podem se fazer presentes por diversos sintomas. O reconhecimento do abuso é o primeiro passo para a prevenção.
Quero deixar um convite para assistir o vídeo da Dra. Eleanor Madruga Luzes, médica, psiquiatra, terapeuta junguiana, PhD em Ciência do Início da Vida, sobre os 3 primeiros anos de vida. É só acessar esse link, e terá mais informações sobre a importância do início da vida, inclusive a concepção.